Hoje venho compartilhar um pouco da fonte inesgotável de arte que há nas obras de Paes. Escolhi um de suas prosas poéticas, em que o autor refere-se a sua avó, personagem marcante em sua vida e acredito que na vida de qualquer ser humano. A imagem da avó é sinônimo de aconchego e de paz pra toda pessoa que presa e valoriza os valores familiares. Aqui, Paes faz menção à memória e busca resgatar a lembrança, ao mesmo tempo, alegre de sua avó em oposição à tristeza de sua perda, e retrata a forma como a avó foi tratada no fim de sua vida, tal como seus medos, as histórias contadas por ela e a debilidade ao longo dos anos.
DONA ZIZINHA
Criara-se numa fazenda no estado do Rio. Lá decerto foi que
ouvira, da boca de alguma ex-escrava, as historias com que
enchia de susto as noites de nossa infância: “Ai que eu caio!
e caía uma perna. Ai que eu caio! e caía um braço”.
Cultivava os seus próprios terrores. Verdureiro que lhe batesse
à porta era despachado incontinenti se, após um manhoso
interrogatório, ela descobrisse que tinha horta perto do
cemitério. Sepulturas e caveiras lhe davam asco invencível.
Mas gostava de histórias de crimes, sobretudo misteriosos.
Com seus olhos fundos, já fracos, ajudados por uma grossa
lente de bolso que até hoje guardo, lia incansavelmente, e
nos deixava ler, os folhetins trazidos toda semana pelo
carteiro - Zevaco, Dumas, Conan Doyle.
O avanço da surdez com o passar dos anos, o crescimento
dos netos que já não tinham gosto pelas suas histórias ou
folhetins, a impaciência dos adultos de conversar com ela
aos gritos, condenaram-na praticamente ao silêncio.
Não se sentava mais à mesa conosco para as refeições.
Preferia comer solitária na sua cozinha, o prato fundo sobre
o colo à maneira da roça: arroz, feijão, couve, farinha e o
bife sem sabor algum porque, de nojo, o lavava com sabão
antes de fritá-lo.
Só se ia deitar depois de todos terem chegado, fosse a que
horas fosse. Cerrava então as portas e as janelas com uma
infinidade de chaves, trancas, ferrolhos, levando seu zelo ao
ponto de prender pedacinhos de linha nos batentes. Às
vezes nós crianças, quando acordávamos mais cedo do que
ela, rompíamos os fios de linha para nos divertir com a sua
muda perplexidade de supor violado, de fora para dentro ou
vice-versa, o seu castelo inexpugnável.
Nele continuou a viver com a filha mais velha, também viúva,
após a morte de J.V. e a dispersão do resto da família, cada
qual para um lado. Por estranho que pareça, não consigo
me lembrar da sua morte nem do seu enterro, embora me
lembre muito bem de todos os outros enterros da casa.
Quem sabe nunca morreu, ela que tinha tanto pavor de
cemitérios. Quem sabe não voltou, sem que nos o
percebêssemos, para a fazenda fluminense de onde
viera,levando consigo os velhos folhetins que ninguém mais
se interessava em ler e as velhas histórias de assombração
que já ninguém queria ouvir.
(PAES, José Paulo. Prosas seguidas de odes mínimas.1992, p.27-28)
Obrigada pela visita! E que bom compartilharmos Paes: maravilhoso, sempre!
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