quarta-feira, 7 de abril de 2010

Dom Quixote de La Mancha


Numa pequena aldeia de Mancha, província espanhola vivia um fidalgo. Homem de costumes rigorosos e decante uma fortuna. Dom Quesada ou Queixano, ninguém nunca soube ao certo, vivia da exploração de suas propriedades, que mal lhe rendiam para manter uma simples aparência de abastança. Homem forte, altivo e nervoso, cultivava a caça como esporte e forma de abastecer sua mesa.
Aos cinqüenta anos, magro, alto, de gestos imponentes e certa altivez forçada, era mais conhecido por sua enorme biblioteca, onde empenhava toda moeda conseguida nas colheitas ou pela venda sucessiva de partes de suas terras, do que propriamente por sua esquisita maneira de viver. Entre um povo de raras leituras, como era o de sua aldeia, causava espanto e admiração aquela voracidade com que comprava e consumia livros e mais livros. E o mais intrigante era que toda sua biblioteca só abrigava livros sobre aventuras de cavalaria andante, na época coisa do passado.
Perambulando por sua propriedade ou visitando amigos da aldeia, o imaginoso fidalgo ia recompondo as aventuras que lia, incluindo-se no enredo principal herói e conduzindo a história a seu bel-prazer.
À força de tanto ler e imaginar, foi-se distanciando da realidade a ponto de já não poder distinguir em que dimensão vivia. Varando noites e noites à luz de um candeeiro, lia, relia e reconstruía, à sua maneira, desenrolar de todas as aventuras. Aqueles livros, ultrapassados pelo tempo e cheios de citações absurdas, contribuíram para confundir ainda mais a mente do fidalgo. [...]
De tanto imaginar, um dia rompeu o elo que o prendia a realidade. Num estado febril e agitado, iniciou uma existência onde só existiam personagens de cavalaria andante. Eram gigantes para derrotar, castelos que deviam ser assaltados, donzelas prisioneiras de algum tirano para salvar e legiões de bandidos para combater.

Foi assim que, completamente transtornado, resolveu que seria cavaleiro andante e partiria com suas armas e seu cavalo em busca de aventuras e perseguindo justa fama.
            Imaginando-se um predestinado pelo valor de seu braço e de seus nobres propósitos, apressou-se a iniciar a incomparável jornada.
            Rebuscando o sótão de sua casa, encontrou uma velha e enferrujada armadura que havia pertencido a seu bisavô há muito desaparecido. Depois de paciente trabalho, raspando a ferrugem, limpando o mofo e remendando alguns pedaços  perdidos a tempo, conseguiu uma armadura.
            Vencida essa etapa, foi em busca de seu cavalo, mesmo para um espírito perturbado, era impossível existir um nobre cavaleiro sem montaria.
            Ele possuía um pangaré que era usado nos serviços do sítio. O animal, apesar de magro e feio, pareceu um belo garanhão aos do fidalgo. Depois de muito pensar, deu-lhe o nome de Rocinante. Esse nome lhe pareceu sonoro e adequado. Se antes havia sido um simples rocim, nada mais justo que agora fosse um Rocinante.
            Batizado o cavalo, faltou-lhe um nome para si mesmo. Os nobres cavaleiros, personagens de seus livros, sempre trocavam os nomes. Ele deveria fazer o mesmo. Depois de oito dias remoendo o cérebro, encontrou o que lhe serviu como armadura da alma até o final de suas aventuras. Não seria mais simplesmente Quesada ou Quixano, e sim Dom Quixote. E, como faziam cavaleiros andantes, juntou ao seu o nome do lugar de origem: Dom Quixote de La Mancha.
Tudo preparado para a partida, percebeu que lhe faltava apenas encontrar uma nobre dama para apaixonar-se. Um cavaleiro andante sem amores era uma arvore sem frutos, um corpo sem alma. Se por azar ou sorte, derrotasse um gigante, teria que enviá-lo à sua amada para que servisse de escravo. Esse era o procedimento da nobre cavalaria andante e Dom Quixote queria seguir, fielmente, seus costumes. Por isso, resolveu eleger uma dama que seria guardiã de todas as suas conquistas. Num passado distante havia amado, em discreto silencio, uma robusta camponesa que, por morar num povoado vizinho e ter outros interesses, jamais se dera conta daquela secreta paixão. Chamava-se Aldonça Lourenço, mas ao fidalgo pareceu melhor dar-lhe outro nome. Era uma princesa e deveria chamar-se Dulcinéia. Como morava na aldeia Toboso, completou o apelido: Dulcinéia de Toboso. Esse nome lhe pareceu musical e digno de tão nobre senhora. Como, aliás, todos os outros que haviam escolhido.
            Estava pronto para buscar a glória das batalhas e o gosto da aventura. Completamente armado, montado no altivo corcel, lançou-se ao mundo.

Miguel de Cervantes

7 comentários:

  1. Oii ,

    amava Dom Quixote , meu preferido de Cervantes,
    blog sempre perfeito Renata , super interessante !

    Acompanhando sempre !

    Beijos *-*

    ResponderExcluir
  2. "De tanto imaginar, um dia rompeu o elo que o prendia a realidade"

    Será que estou correndo este risco? (risos).

    Ótimo post, Renata. Assim são os clássicos: Dom Quixote está completando 405 anos do seu lançamento e é, ainda, leitura fundamental.
    Parabéns
    Beijos

    ResponderExcluir
  3. Olá Renata,
    Quixote é sempre fundamental. Fala de nossas pequenas loucuras, nossos amores descabidos por nossas Dulcinéas: delírios do quotidiano que nos fazem sonhar para poder existir. Fundamental é tb teu blog. Parabéns,
    Carlos Eduardo
    Se puder visite: veredaspulsionais.blogspot.com

    ResponderExcluir
  4. Ola Renata,

    Gostei da sua escrita e da "sua " história....

    parabens

    ResponderExcluir
  5. Obrigada pela visita,

    tem blogues que deviam ser obrigatórios....o teu.

    jinhos

    ResponderExcluir
  6. Cervantes e Dom Quixote. Precisa mais?

    Abracos

    ResponderExcluir
  7. Primeiro o Machado, agora o Cervantes: assim não saio mais daqui. E eu preciso ir dormir - olha só a hora (rsrs).

    Cervantes é outro autor predileto meu: costumo dizer que Machado é meu autor principal, mas "Dom Quixote", sem dúvida, é meu romance predileto. E foi bom encontrá-lo por aqui.

    Mais um ótimo motivo para sempre voltar aqui. Posso?

    rsrs...

    Bejo!

    ResponderExcluir